quinta-feira, 26 de maio de 2011

Acima de tudo

Cada dia mais burros, cada dia mais toscos.

Entramos nas lojas, nos supermercados,
nos shopping centers e de lá saimos
com o rei na barriga, mostrando pro mundo
olha, nossa burrice, nossa vulgaridade
como se estes fossem nosso trunfo.
Entramos nas universidades como um cão
entra na igreja por falta de espaço nos estábulos
e é preciso correr da chuva, se esconder porque
a tempestade vem forte e não dá pra encará-la de frente.

Vamos para o trabalho brincar de seriedade
somos burocratas e não passamos de vítimas da burocracia
que favorece apenas os donos da mordomia.

Somos pais de alguns filhos, donos de um carro
e um cachorro lindo, grande e pequeno, sem rabo e peludo
tudo está perfeito, olha,
e por isso tudo está aí, cumprindo nossos anseios
indignos, bem na verdade, mas são nossos, entende?

Tornamo-nos, cada dia, mais caretas
aprovamos atrocidades contra os outros só porque os outros
são os diferentes, são o que querem e isso não pode, é injusto contra nós
que somos só o que podemos, que temos nossas ideias e preconceitos
que não podem ser esquecidos, porque são os de nossos pais e nossos avós
eles nos deixaram isso.
É digno matar um homossexual, é digno
porque Deus está morrendo e a família está morrendo junto por causa desses filhos da puta
e Deus não aprova isso, e a família não pode aceitar
Deus e a família estão acima de tudo
matar um ser humano, bater nele, feri-lo com pauladas e palavras xulas
só porque ele é um homossexual é digno,
é isso!
tem de fazer isso, não dá pra atolerar o ser humano como ele é
não dá pra querer ser o que se é, é um crime contra nós
é injusto, porque nós nos esforçamos tanto para sermos essa outra coisa
nós sofremos tanto tendo que ir contra nossa natureza
e aí vem o outro e nos desmacara desse jeito
sendo o que é e o que quer ser para além de tudo
Deus está acima
Ele é o amor e o ser humano é o ódio
e, na verdade, o que tem de fazer o ser humano
é justamente isso, alimentar o amor de Deus, cuidar dele
dar-lhe fundo
e alimentar, do mesmo modo, o ódio entre os homens
fundo sem fundo.

Cada dia mais burros e cada dia mais toscos.

Não podemos perder tempo
qual a nova desculpa? temos de disfarçar nossa iniquidade
nossa hipocrisia, não se esqueça disso, disfarce, disfarce
senão eles te entendem, e aí você mesmo foderá com tudo.

Tudo está indo: o time ganhou o campeonato
perdeu o jogo mas conquistou o título
aquele jogador super caro foi enfim comprado
e é melhor assim. Por isso eu entendo que não dê pra acabar
com a fome no mundo, que não tenha como investir pesado numa
educação de qualidade para as nossas crianças. Não dá. Eu entendo.
É preciso investir no time, comprar aquele jogador caro,
pagar pra que ele faça aquele gol,
é preciso separar esse dinheiro pra cobrir as despesas
dos deputados, senadores e ministros, e todos eles,
o presidente, o governador, o prefeito e até os vereadores.
Tem de gastar esse dinheiro direito, investir em nossa alienação
botar grana em nossa burrice, arrumar o estádio porque o time vai dar show naquele jogo.

E lá em casa, vai tudo indo: a mulher e os filhos
e a amante, eu sou poderoso!
Comprei ano passado uma tv de plasma 40 polegadas
e os meninos ficaram encantados com as cores e o brilho
das imagens naquele filme, Avatar, sei lá o nome daquilo.
Está tudo indo:
penso até em comprar um livro e matar meu tempo
tem o daquele cara Cury, as coisas lindas que ele fala
Não,
eu vou é economizar porque no fim do ano
eu vou trocar meu carro, e aí sim vou mostrar pro meu vizinho
que eu sou o cara e que ele é só o vizinho
com o seu carro do ano atrasado, seus filhos e seu cachorro lindo.

sábado, 16 de abril de 2011

POEMAS DE AMOR E DE CIÚMES

A Ana Beatriz Figueiredo
Alessander Nery
e Pablo Henrique

Se Clódia desprezou Catulo

E teve Rufus, Quintius, Gelius

Inacius e Ravidus

Tu podes muito bem, Dionísio,

Ter mais cinco mulheres

E desprezar Ariana

Que é centelha e âncora

Hilda Hilst.

I

Me chama pelo nome

Presta a mim esta homenagem

Me despe e me fita

Depois me torne o que disseste

À vida quando nascente

Inconscientemente para a vida.


II

Eu queria ser teu corpo

E o envolvimento que ele tem

Com os poemas que na noite

Te fazem gemer e até te gemem.

Eu queria ser teu órgão

Qualquer órgão e o esqueleto

Pra bater ou te pulsar tão longo

Pra te ser interno como teu sentimento.

Eu queria ser teu signo

E o temperamento que dele

Conduz o teu, eu queria te guiar

Na montanha firme, ou no corredor do rio,

E te avistar em mim, dentro do meu.


III

O mundo gira, Carolina,

Porque meu corpo te concebeu

E tão cedo ou tarde sendo

Saberás que o dia amanheceu

E que com o dia só briga quem

Na noite te esqueceu.

Eu sou a moça, Carolina,

E tu és a menina

Meus sonhos sonham a ti

E os teus um dia, porque na noite,

Sonharão como os meus

No escuro.


IV

É que recusas mais meu corpo

Que meu amor.

E por isso sofro

Como a faca e a fatia do queijo

Que tua faca não tocou.


V

Saiu brando pela porta afora

Me deixou gavetas escancaradas

E documentos espalhados pela

Casa cômoda como se fossem

No lixo do banheiro o banho

E no vaso as camisinhas gozadas

E no chão o chão e as paredes ligadas

À mesa e o aparelho de som ligado

Tudo embaralhado de tanto susto e

O computador com dedos

E o lençol molhado de lágrimas

E o dicionário Aurélio aberto

Justamente na página 184

Onde se inaugura o uso da palavra

Coobrigado.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Em nome da Lua


Não mais o dia

E não mais reprisar

O sol nas manhãs de serão

Não mais o chão

E não mais reatar

Os laços do calçado com o pé no chão

Não mais o ar

E não mais respirar ameno o mesmo ar da terra

Não mais os pratos

E nem mesmo os copos

Não mais comer o que nunca alimenta esta fome infinita

E não mais os dias

E nem acompanhar os dias por entre os dias

As fugas por entre as fugas

As ruas por entre as ruas

E não mais a sina

Somente a paixão

Somente a paixão

Somente a paixão.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

E se

E se você cometesse um crime. Contra um cachorro, por exemplo. Se você, ao invés de matar um cachorro a pauladas, escodesse dele a comida (e os restos). Se você guardasse tudo no alto, e pusesse dependurado de um modo que o cheiro de comida recendesse a casa toda. E você fechasse a casa com o cachorro dentro. Se você deixasse o cheiro explodir intenso nas narinas magras do cachorro, avivando até seu último faro e sua última fome. Se você cometesse um crime, hoje.

E se você tossisse alto, mas tão forte e alto que o barulho estridente de sua interioridade rouca ensurdecesse até os carros nas ruas e nas garagens. E se de um tanto de seu pulmão fugisse, como um mar, um monte de sua vil catarrice, e se essa gosma nojenta, que é sua massa espessa, sujasse as ruas e as casas como um cego suja-se e a tudo num banheiro distinto. Se você tossisse longo e desfeito e, com isso, cometesse um crime.

E se você preparasse para o mundo uma espécie de componente químico capaz de exterminar dos ares e das carnes todo inseto nojento e ponjoso: as moscas, e gafanhotos. E propusesse ainda outra espécie de componente químico que pudesse exterminar das árvores e das peles todo ácaro parasita: os carrapatos, e as pugas. Se você pudesse, por inveja ou por vergonha de sua natureza fingida, se pudesse, cometeria um crime desses?

E se você morresse. Se você se matasse. E cuidasse para que a culpa não caísse sobre seu desprezo à vida. Se, ao contrário, você deixasse aos outros o romorso da vida. Se você morresse por vontade e por decisão unicamente de sua tristeza e fingisse com um sorriso de caixão que tudo não passou de um palpite maldito. Se você se desesperasse como o inviável. E viesse de noite amanhecer o medo do dia. Se você cometesse um crime (contra si mesmo, e por isso contra os outros). Se você cometesse um crime contra um cachorro. Tudo se resolveria? Se sentiria mais digno da amizade e da admiração de todos? Se você ensurdecesse o mundo com sua rouquidão azeda, todos, enfim, te ouviriam? E te compreenderiam? Se você sujasse o mundo com sua saliva porca, todos te beijariam a boca? E todos te receberiam em casa e te dariam água em qualquer copo? E se você concluísse este seu projeto de ser único e superior e invencível, até perante o que está morto e perante até o enexistível. O mundo te satisfaria? Ter o mundo.

Se você fosse único e superior e invencível, seria feliz como todo mundo?

E se você cometesse um crime.