quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

E se

E se você cometesse um crime. Contra um cachorro, por exemplo. Se você, ao invés de matar um cachorro a pauladas, escodesse dele a comida (e os restos). Se você guardasse tudo no alto, e pusesse dependurado de um modo que o cheiro de comida recendesse a casa toda. E você fechasse a casa com o cachorro dentro. Se você deixasse o cheiro explodir intenso nas narinas magras do cachorro, avivando até seu último faro e sua última fome. Se você cometesse um crime, hoje.

E se você tossisse alto, mas tão forte e alto que o barulho estridente de sua interioridade rouca ensurdecesse até os carros nas ruas e nas garagens. E se de um tanto de seu pulmão fugisse, como um mar, um monte de sua vil catarrice, e se essa gosma nojenta, que é sua massa espessa, sujasse as ruas e as casas como um cego suja-se e a tudo num banheiro distinto. Se você tossisse longo e desfeito e, com isso, cometesse um crime.

E se você preparasse para o mundo uma espécie de componente químico capaz de exterminar dos ares e das carnes todo inseto nojento e ponjoso: as moscas, e gafanhotos. E propusesse ainda outra espécie de componente químico que pudesse exterminar das árvores e das peles todo ácaro parasita: os carrapatos, e as pugas. Se você pudesse, por inveja ou por vergonha de sua natureza fingida, se pudesse, cometeria um crime desses?

E se você morresse. Se você se matasse. E cuidasse para que a culpa não caísse sobre seu desprezo à vida. Se, ao contrário, você deixasse aos outros o romorso da vida. Se você morresse por vontade e por decisão unicamente de sua tristeza e fingisse com um sorriso de caixão que tudo não passou de um palpite maldito. Se você se desesperasse como o inviável. E viesse de noite amanhecer o medo do dia. Se você cometesse um crime (contra si mesmo, e por isso contra os outros). Se você cometesse um crime contra um cachorro. Tudo se resolveria? Se sentiria mais digno da amizade e da admiração de todos? Se você ensurdecesse o mundo com sua rouquidão azeda, todos, enfim, te ouviriam? E te compreenderiam? Se você sujasse o mundo com sua saliva porca, todos te beijariam a boca? E todos te receberiam em casa e te dariam água em qualquer copo? E se você concluísse este seu projeto de ser único e superior e invencível, até perante o que está morto e perante até o enexistível. O mundo te satisfaria? Ter o mundo.

Se você fosse único e superior e invencível, seria feliz como todo mundo?

E se você cometesse um crime.

3 comentários:

  1. Brilhante, brilhante, brilhante, mais uma vez brilhante, brilhante...
    Cada vez vc me surpreende mais e me deixa boqui-aberto. Parabens pelo texto! Simplesmente fantástico, confesso que adaptei algumas pessoas nele,rs.

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  2. Cara, este texto foi um grande achado pra mim . Obrigado por tê-lo escrito, você está se tornando um grande esteta.

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  3. confesso que adaptei algumas pessoas nele²
    Bia

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